Regina Abreu
Universidade Federal do Rio de Janeiro – Brasil
Nina Lys Nunes
Instituto de Pesquisa Jardim Botânico do Rio de Janeiro – Brasil
Resumo: O artigo apresenta um estudo de caso na comunidade extrativista Céu do Juruá, no Amazonas, sobre processos de confecção de uma linha a partir das folhas da palmeira do tucum, espécie endêmica da região amazônica. Todo o preparo da linha bem como suas diferentes formas de utilização expressam modos peculiares de sociabilidade e de produção e transmissão de um conhecimento tradicional. A linha e todos os produtos gerados a partir dela são biodegradáveis, não representando riscos para os ciclos de vida na floresta, constituindo uma via para o desenvolvi- mento sustentável na região. Vivendo num planeta ameaçado pelas sucessivas crises ambientais provocadas pelo modelo de progresso desenvolvimentista, podemos dizer que esses conhecimentos tradicionais transmitidos de geração a geração constituem a expressão de um importante patrimônio cultural.
Palavras-chave: conhecimento tradicional, linha do tucum, patrimônio imaterial, sa- ber fazer.
Abstract: This paper presents a case study which took place in the extractivist com- munity in Céu do Juruá, in the Amazon, about the manufacturing process of a thread from the tucum palm leaves, an endemic specie in the Amazon region. The whole preparation process of the thread, as well as its different forms of use, show peculiar ways of socializing and producing, as well as transmitting traditional knowledge. The
* Aos integrantes da comunidade Céu do Juruá, especialmente ao líder comunitário Alfredo Gregório de Melo, que compartilharam conosco o saber e a disposição de fazer. A Glauco Vilas Boas, Raoni Vilas Boas e Robson Ribeiro, in memoriam, pela alegria e pelo entusiasmo que nos estimularam e não nos deixaram desistir de seguir nesta “linha”.
thread and all the products made from it are biodegradable and do not pose any risk to the forest life cycles, resulting in a path towards sustainable development in the re- gion. Bearing in mind that we live in a planet threatened by recurring environmental crises as a consequence of the development-oriented model of progress, one could ar- gue that the traditional knowledge bestowed upon the younger generations constitutes a manifestation of important cultural heritage.
Keywords: immaterial heritage, tucum thread, know-how, traditional knowledge.
O patrimônio cultural imaterial ou intangível, a biodiversidade e o saber fazer
A Unesco (2003) define assim o patrimônio cultural imaterial ou intangível:
Entende-se por “património cultural imaterial” as práticas, representações, ex- pressões, conhecimentos e competências – bem como os instrumentos, objectos, artefactos e espaços culturais que lhes estão associados – que as comunidades, grupos e, eventualmente, indivíduos reconhecem como fazendo parte do seu património cultural. Este património cultural imaterial, transmitido de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função do seu meio envolvente, da sua interacção com a natureza e da sua história, e confere-lhes um sentido de identidade e de continuidade, contribuindo assim para promover o respeito da diversidade cultural e a criatividade humana. Para efeitos da presente Convenção, só será tomado em consideração o património cultural imaterial que seja compatível com os instrumentos internacionais re- lativos aos direitos humanos existentes, bem como com a exigência do respei- to mútuo entre comunidades, grupos e indivíduos, e de um desenvolvimento sustentável.
Essa definição tem sido tomada como ponto de partida de programas de governo e políticas públicas voltados para a valorização de saberes e fazeres e antigas tradições de artesanato que remontam a antigas formas de organi- zação do trabalho, com o sentido de fortalecer um acervo de “conhecimentos tradicionais” ameaçado de extinção pelas forças homogeneizadoras do capi- talismo transnacional. Esse movimento vem conferindo estatuto novo a mani- festações culturais que antes eram consideradas restos ou vestígios de antigas formas de organização social já desaparecidas ou em vias de desaparecimento.
De “coisas do folclore” ou “simples curiosidades do passado”, tanto os “co- nhecimentos tradicionais” quanto as “manifestações culturais” das chamadas “populações tradicionais” tornaram-se objeto de políticas de preservação na condição de patrimônios locais, nacionais e até mesmo universais. Esses pa- trimônios de pequenas comunidades, etnias ou grupos locais passaram a dar o tom não apenas no campo do patrimônio, mas também no campo de acordos internacionais. Preservar o diverso, o diferente, o singular passou a ser um exercício de proteção à diversidade das culturas.
Paralelamente, outro movimento contribuiu para fazer avançar ainda mais essa tendência à “patrimonialização das diferenças”: a chamada “ques- tão ambiental”. O debate internacional sobre a finitude dos recursos naturais do planeta e especialmente a sinalização dos ambientalistas para a crise das fontes fósseis de energia, sobretudo dos derivados do petróleo, fez com que fossem desencadeadas buscas por fontes alternativas de energia e sobre a sis- tematização de novos conhecimentos capazes de produzir novas formas de geração energética. É nesse contexto que entraram em cena novas categorias como “meio ambiente” e “biodiversidade”. O que antes era entendido como território da “natureza” transformou-se em “questão ambiental” e “biodiver- sidade”, e o que antes integrava o continente da “cultura” passou a ser esqua- drinhado como forma de manejo das “riquezas naturais” para usos futuros. A potencialização do conceito de “conhecimento tradicional” tem a ver com este duplo movimento: de um lado, a “patrimonialização das diferenças”; de outro lado, a potencialização das “riquezas naturais” num mundo onde cres- cem os sinais de grandes crises energéticas.
Nesse contexto do novo campo da “biodiversidade”, passou a ser da maior importância identificar e proteger o chamado “conhecimento tradicio- nal associado”. Para se legislar sobre a matéria e tomando-se como base o conceito de “conhecimento tradicional”, o governo brasileiro vem atuando no sentido de identificar e proteger comunidades produtoras de conhecimentos singulares, específicos e únicos, seja na área dos “conhecimentos tradicionais” sobre usos das espécies da natureza, seja na área da produção do artesanato e de outras formas culturais. Prevalece a ideia de proteção ao “saber fazer”. O grande desafio tem sido o de criar uma legislação que atenda interesses coletivos, uma vez que a legislação sobre propriedade intelectual vinha prote- gendo apenas a criação individual.
Essa nova configuração afeta diretamente o campo do patrimônio, que passa a ser um campo estratégico de defesa de interesses de grupos locais, comunidades ou, para usar os termos da Constituição de 1988, “as populações tradicionais”. O “ouro verde brasileiro” encontra-se em grande parte preserva- do em territórios ocupados por povos da floresta. Esses povos são detentores do chamado “conhecimento tradicional” sobre a fauna e a flora, imprescindí- veis para os novos procedimentos da ciência.
Por outro lado, temos percebido uma nova postura por parte do gover- no, que tem se mostrado disposto a ouvir as “populações tradicionais” como interlocutores em políticas de interesse público no sentido da democratização das esferas decisórias e no projeto de inclusão social do Estado brasileiro. Entretanto, o que se percebe é que esse é um campo de conflitos e interesses contraditórios. Diversas têm sido as ações no sentido de delimitar os sentidos e as práticas em torno da categoria “conhecimento tradicional”. Essa categoria passou a ser objeto de disputas e reflexões de diferentes setores e diferen- tes especialistas. Ambientalistas, setores do governo e setores da iniciativa privada articulam-se com especialistas da área do direito, da biologia e da antropologia em torno da legislação e de formas de proteção aos chamados “conhecimentos tradicionais”.
Portanto, é a partir do discurso fundador da Constituição de 1988 que surge no Brasil “uma nova ordem discursiva” que torna possível a emergên- cia de novas leis de “patrimonialização das diferenças” ancoradas na cate- goria “conhecimento tradicional”. A Constituição e os novos projetos de lei que se seguiram garantem caminhos possíveis para a proteção a “interesses coletivos” não apenas da sociedade nacional, o que já vigorava até então, mas também de “coletividades singulares” – denominadas ora por “comunidades locais” ora por “populações tradicionais” ou, de maneira mais especificada, “povos indígenas”, “quilombolas”, “povos da floresta”. A Constituição tam- bém prevê a proteção jurídica dos bens materiais e imateriais portadores de referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (indígenas, quilombolas, caiçaras, caboclos, caipi- ras), suas formas de expressão, os modos de criar, fazer e viver e as criações científicas, artísticas e tecnológicas, qualificando tais bens como patrimônio cultural brasileiro.
A criação do Programa Nacional de Patrimônio Imaterial, por meio do decreto federal nº 3.551, de 4 de agosto de 2000 (Brasil, 2000), instituiu dois
mecanismos de valorização dos chamados aspectos imateriais do patrimô- nio cultural: o inventário dos bens culturais imateriais e o registro daqueles considerados merecedores de uma distinção por parte do Estado. São con- siderados bens culturais imateriais as festas, celebrações, narrativas orais, danças, músicas, modos de fazer artesanais, enfim, um conjunto de expres- sões culturais que não estão representadas pelo chamado patrimônio material ou tangível. Nesse contexto, atribui-se grande relevo para o “saber fazer” que tangencia a noção de “conhecimento tradicional”. Para implementar a política do patrimônio imaterial que pretende identificar e proteger a diver- sidade do patrimônio cultural brasileiro foram instituídos quatro livros de registro que espera-se venham ter a força do instituto legal do tombamento. São eles: o Livro dos Saberes, o Livro das Celebrações, o Livro das Formas de Expressão e o Livro dos Lugares. O processo do registro é coordenado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), cabendo ao Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural a competência de inscrever bens culturais de natureza imaterial nos livros de registro. O instituto do re- gistro tem como objetivo a valorização dos bens inscritos. O Estado fica obri- gado a reunir e divulgar documentação ampla acerca de cada bem legalmente reconhecido. Trata-se, portanto, de contribuir para a identificação, a promo- ção e a preservação de bens culturais de natureza imaterial, reconhecendo-os como patrimônio em permanente processo de transformação. O Programa Nacional do Patrimônio Imaterial apoia ações voltadas para a pesquisa, di- vulgação e fomento. Essa nova política está sendo implementada de forma descentralizada, com a participação de outros órgãos do governo federal, dos estados, dos municípios e de organizações da sociedade civil. As pesquisas para compor esse inventário podem ser realizadas por diferentes agentes em múltiplas parcerias do Estado com a sociedade civil visando identificar, do- cumentar e reconhecer os bens que integram o patrimônio cultural brasileiro cuja preservação escape ao âmbito do instrumento legal do tombamento (área restrita à proteção ao patrimônio material). Apropriando-se de um conceito antropológico de cultura, o trabalho de inventário e registro do patrimônio imaterial agrega várias áreas, desde celebrações e modos de expressão até modos de fazer. Neste último quesito, o tema do “conhecimento tradicional” aparece com pleno vigor e se cruza ao tema da “biodiversidade” e dos “re- cursos genéticos”. O conhecimento tradicional associado ao uso sustentável
da palmeira do tucum constitui um patrimônio imaterial emblemático dos povos da floresta.
A região amazônica constitui a maior floresta tropical do mundo e uma das últimas fronteiras de conhecimento em relação aos recursos naturais. A megadiversidade biológica encontrada nesses ambientes, tão pouco co- nhecidos, vem despertando crescente interesse. Os estudos realizados nesse bioma demonstram a escassez de informação nas regiões longe dos gran- des centros urbanos, mas as estimativas são surpreendentes em relação à biodiversidade, tendo inúmeras espécies novas sido descritas até hoje pela ciência. O conhecimento dessa biodiversidade e desses recursos naturais in- tegra a cultura dos antigos habitantes dessa região. Esse conhecimento tra- dicional é mantido e transmitido através das gerações, constituindo-se numa das principais fontes de informação sobre essa enorme região de florestas. Ele está impregnado nas habilidades, ferramentas e objetos que essas popu- lações utilizam para a sobrevivência no dia a dia. Suas casas, alimentos e remédios, além das ferramentas e artefatos religiosos e culturais, são obtidos diretamente da floresta, que constitui a fonte de seus recursos, indicando a existência de uma relação estreita entre as populações e a natureza ao redor e apresentando múltiplas possibilidades concretas do uso sustentável da di- versidade biológica.
Os resultados da pesquisa aqui apresentada configuram o primeiro passo de um inventário que sistematiza algumas das características e dos aspectos vinculados a esse conhecimento tradicional em comunidades na Amazônia. Os realizadores desse inventário são agentes múltiplos – profissionais de vá- rios campos do saber que atuam de maneira interdisciplinar e também integra- da com os integrantes da comunidade Céu do Juruá. Muitas parcerias tiveram lugar para que o projeto se realizasse – entre uma organização não governa- mental – o Instituto de Estudos Culturais e Ambientais (Iecam), uma comuni- dade – Céu do Juruá –, uma produtora cultural – a Imagine Arte e Cultura –, setores do governo do Acre e do Amazonas que apoiaram o projeto em diver- sas etapas, o Jardim Botânico do Rio de Janeiro, a Petrobras, a Embaixada do Canadá e também apoios de pessoas que deram suporte em vários momentos. Além disso, contamos com apoio do CNPq (Edital Universal e bolsa de pro- dutividade) para a pesquisa e a redação deste artigo.
O projeto “Linha do Tucum: Artesanato Amazônico”
Foi na própria comunidade extrativista Céu do Juruá no Amazonas que surgiu a ideia de formar uma oficina-escola de artesanato valorizando a arte da fiação da linha do tucum e a produção de artesanato com sementes, cocos, cipós e outros produtos florestais não madeireiros da região. O foco decisi- vo e necessário para todos sempre foi a tão sonhada autossustentabilidade, imaginando-se como caminho possível a comercialização de produtos arte- sanais. Para que o projeto tomasse forma e pudesse se constituir dentro das atuais políticas de incentivo, um longo processo foi necessário com a contri- buição de muitos profissionais, agentes culturais e representantes de institui- ções em parceria permanente com a comunidade Céu do Juruá. Dessa equipe interdisciplinar e intercultural nasceu o projeto “Linha do Tucum: Artesanato Amazônico”, concebido nos moldes do edital da Petrobras Cultural de 2007.
O projeto foi encaminhado pelo Iecam, organização não governamental que desde 1992 vem apoiando e desenvolvendo projetos voltados para a pre- servação do patrimônio cultural e ambiental de comunidades tradicionais. De centenas de inscritos, o projeto foi selecionado entre os 13 contemplados pela Petrobras na área de Patrimônio Imaterial. Com esse edital foi possível montar a oficina de artesanato; oferecer curso de capacitação nas técnicas de benefi- ciamento das fibras e sementes; e, ainda, realizar o documentário Linha do tucum: a linha da lealdade (2009) de 50 min, dirigido pelo cineasta Noilton Nunes, o livro intitulado Linha do tucum: artesanato da Amazônia (Fernandes et al., 2010) e as exposições do artesanato na própria comunidade, em Rio Branco, na Biblioteca da Floresta, e no Rio de Janeiro, no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, e ainda um website1 sobre o projeto.
A comunidade Céu do Juruá, no seringal Adelia, está localizada no Baixo Juruá, sudoeste do estado do Amazonas no município de Ipixuna, próximo à fronteira com o Acre, entre as coordenadas 6°50’S e 71°15’W. Ocupa uma área de cerca de 3000 hectares, recoberta pela Floresta Pluvial Amazônica, sendo uma região riquíssima em distintos ambientes, como igapó terra firme, várzea, três grandes lagos e inúmeros igarapés (Figura 1).
1 Ver http://www.linhadotucum.art.br.
Figura 1. Localização do Céu do Juruá e cidades vizinhas nos estados do Acre e Amazonas.
A história da comunidade remonta aos antigos seringais que tiveram o seu apogeu na época da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Com a queda da borracha muitos seringueiros migraram para a cidade de Rio Branco na pers- pectiva de obter melhores meios de subsistência (Fernandes et al., 2010). Quase 50 anos depois, descendentes desses seringueiros voltaram às suas origens no seringal Adélia, conhecido como Estorrões (por causa dos “esturros” das on- ças), reunindo parentes e agregados dispersos ao longo do rio Juruá fundando a Céu do Juruá, uma comunidade espiritualista que cultua o Santo Daime.
Alfredo Gregório de Melo é o atual líder dessa comunidade. Ele é filho de Sebastião Mota Melo, o “padrinho Sebastião”, líder espiritual muito im- portante em toda a região e um dos fundadores da doutrina do Santo Daime. O Santo Daime é uma manifestação religiosa surgida na região amazônica nas primeiras décadas do século XX. Consiste em uma doutrina espiritualista que tem como base o uso sacramental de uma bebida enteógena, a ayahuasca, com o fim de catalisar processos interiores e espirituais com o objetivo de cura e bem-estar do indivíduo. Seu fundador foi o lavrador e descendente de
escravos Raimundo Irineu Serra, que passou a ser chamado dentro da dou- trina como Mestre Irineu. Após conhecer a bebida sacramental chamada de ayahuasca pelos nativos da região, Irineu Serra teve uma visão em que um ser espiritual superior lhe entregava uma missão religiosa. Com a morte de Mestre Irineu em 1971, seus seguidores formaram diversas ramificações des- sa religião. Sebastião Mota Melo, um desses seguidores, decidiu formar uma nova igreja a partir da Colônia Cinco Mil, numa área urbana, nas proximida- des de Rio Branco. Ele tinha vindo com toda a sua família do Seringal Adélia, ou Estorrões, para habitar nessa colônia, devido à crise da produção da borra- cha na região. Alfredo Gregório de Melo, um de seus filhos, veio com ele, sua mãe e seus irmãos para a vida nas cercanias da cidade de Rio Branco. Sob a li- derança de Sebastião Mota Melo, o Padrinho Sebastião, e, com a morte deste, de Alfredo Gregório de Melo, o padrinho Alfredo, a doutrina do Santo Daime expandiu-se enormemente a partir dos anos 1980, inclusive fora da Amazônia, em centros urbanos no Brasil e no exterior. Padrinho Alfredo cultivou sempre o sonho de retornar à sua região natal, os Estorrões, e lá desenvolver uma comunidade espiritualista nos princípios ecológicos e autossustentáveis. Esse movimento vem representando um retorno de uma família de antigos traba- lhadores da borracha da cidade para o interior da floresta amazônica. Ele mes- mo, em depoimento, expressa este anseio:
A finalidade e objetivo de eu estar lutando e trabalhando para me aproximar deste lugar, é tanto pelas lembranças antigas de um berço, de um nascimento material muito importante, assim como o berço, o grande berço do nascimento espiritual, do conhecimento espiritual do Sebastião, do meu pai. Neste lugar, meu pai levou muitos anos fazendo atendimento àquele povo necessitado e tra- balhando para educar sua família. (Alfredo Gregório de Melo, entrevista durante pesquisa realizada no Juruá, agosto de 2008).
Atualmente, a comunidade é composta por 20 famílias, num total de 140 pessoas que foram assentadas no seringal desde l999, onde no passado funcio- nava quase toda a economia de produção de agricultura e seringa da região e hoje tem no extrativismo, na pesca e na agricultura a base de sua subsistência. Durante o ano, essa comunidade recebe a visita de adeptos da religião do Santo Daime, membros de igrejas de diversas partes do Brasil e do exterior, que lá vão em peregrinação, numa busca pelo autoconhecimento e pela crença nas forças sagradas que acreditam emanarem da floresta e de suas plantas.
A palmeira tucum
Figura 2. Aspecto da palmeira do tucum –Astrocaryum chambira Burret.
Cientificamente conhecida como Astrocaryum chambira Burret (Figura 2), é botanicamente caraterizada por possuir estipe solitário, ereto, até 15 m de comprimento e 30 cm de diâmetro, com entrenós densamente cobertos por espinhos negros. Folhas: bainha e pecíolo densamente cobertos por espinhos achatados de coloração amarelada; bainha 1,1 m de compri- mento; pecíolo 2,6 m de comprimento; raque 4,8 m de comprimento; 160
pinas por lado, linear ou linear-lanceoladas, irregularmente arranjadas e dis- postas em diferentes planos; com pequenos espinhos nas margens, nervuras das pinas medianas subterminais; pinas medianas com 1,51-1,63 m de com- primento e 4-4,5 cm de largura. Frutos: 6 cm de comprimento e 3,5-4 cm de diâmetro; forma obovada; corola inteira; epicarpo de cor amarelo-esverdea- do quando maduro, coberto por espínulos negros; resíduo estigmático apical proeminente com 0,5-1 cm de comprimento; mesocarpo fibroso; endocarpo duro, com menos de 0,5 cm de espessura. Semente: endosperma homogêneo (Ferreira, [s.d.]).
A ocorrência dessa espécie é descrita na Colômbia, Venezuela, Equador, Peru e Brasil. Neste último país, pode ser encontrada no Acre e no Amazonas com distribuição restrita ao vale do Juruá. É considerada nativa do sudoeste do Amazonas, tendo sido introduzida na Venezuela com sucesso e sendo rara- mente encontrada no Peru (Ferreira, [s.d.]).
Geralmente ocorre em agrupamentos homogêneos, tanto em formações vegetacionais primárias como secundárias, comum em terrenos degradados e em áreas abertas. De crescimento muito agressivo é considerada pioneira e invasora em áreas perturbadas, como pastos. Por ser uma palmeira que requer muita luz, tem a capacidade de se espalhar em áreas abertas, sendo também resistente ao fogo, pois os espinhos do tronco dissipam o calor protegendo-a e mantendo-a viva.
Floresce no mês de agosto a novembro e os frutos amadurecem de no- vembro até maio, sua viabilidade em armazenamento é geralmente curta. A brotação das sementes leva de 3 a 6 meses, a taxa de germinação é moderada e o desenvolvimento das mudas, bem como das plantas no campo é lento, alcançando de 1 a 2 metros aos 2 anos.
O estipe – vulgo tronco – é usado na construção de casas, considerado resistente e de qualidade. Os frutos são considerados comestíveis por povos na Colômbia, no Peru e na Venezuela. O palmito, apesar de ser considerado infe- rior comparado à qualidade de outros, pode ser consumido. As fibras obtidas das folhas imaturas (epiderme das folhas) são usadas, com mais frequência entre os povos da floresta, na fabricação de tecidos, artesanatos, redes, linhas e redes de pesca (Ferreira, [s.d.]).
Do óleo do fruto obtém-se sabão, cosméticos e medicamentos. A polpa é apreciada tanto pelo gado como por animais silvestres que disseminam os frutos que são comestíveis e muito ricos em vitaminas: possui o mais elevado
potencial de provitamina A que se conhece na natureza. Muito apreciados pe- las populações do Norte do país e comercializados em feiras regionais. O epi- carpo é usado na defumação da borracha. A semente também é utilizada para confecção de artesanatos e instrumentos musicais regionais (maracás).
Histórico e uso tradicional da linha do tucum
O primeiro registro oficial sobre o tucum data do século XIII, nos relatos de Manuel de Arruda Câmara, enviado da Coroa portuguesa à colônia, que escreveu para o então Príncipe Regente o texto intitulado Dissertação sobre as plantas do Brasil que podem dar linhos (Câmara, 2008). Entretanto, os indígenas já detinham o conhecimento sobre usos das palmeiras, em especial os usos do tucum. Era comum a utilização pelos indígenas dos frutos para ali- mentação e também para a extração de óleo, práticas que até hoje são pouco divulgadas. A antropóloga Berta Ribeiro (1986) relata que conhecendo diver- sas técnicas de extração de fibras, os índios no Brasil sempre dispuseram de materiais apropriados à tecelagem, confeccionando redes de dormir, saiotes, adornos corporais, sacolas e sacos de carregar, redes de pescar. As obras de entrançamento de cordões e fitas, ou mesmo a simples manufatura do fio ou da linha de meio milímetro de espessura, demonstram a habilidade das fian- deiras e tecelãs indígenas. Diversos grupos indígenas já conheciam técnicas complexas de fiação. Para transformar a matéria-prima em fio ou linha, as índias passavam meses dedicadas a essa tarefa. Berta Ribeiro relata que o tra- balho de fiação em diversos grupos indígenas foi sempre realizado com gran- de harmonia de movimentos, obedecendo hábitos motores adquiridos desde a infância, a tal ponto que a fiandeira era capaz de realizá-lo no escuro, em pé ou andando. Berta Ribeiro assinala ainda que os linhos das palmáceas sempre foram importantes matérias-primas empregadas na tecelagem indígena. O uso do linho e de outros derivados de folhas de palmeiras entre grupos kayapó e outros macro-jê do Brasil tem sido objeto de estudo da antropologia. Esses estudos vêm constatando que o predomínio de uma ou outra palmácea depen- de de sua concentração maior no habitat de cada grupo. Entre os grupos que fazem uso das palmáceas como matéria-prima estão os Tukano e Baniwa do alto rio Negro. Também os Parakanã do médio Xingu e os Parintintin utilizam a fibra da palmeira para urdidura. Já os Guajá empregam unicamente o tucum
para confecção de saia. Os Tikuna empregam o caroatá (Bromelia pinguis) e o caroá (Neoglaziovia variegata) ou mesmo o tucum na tecelagem. Estes índios utilizam apenas o tucum como planta têxtil. Com essa matéria-prima fazem suas redes.
As redes são um capítulo à parte na cultura indígena. Muitas etnias as confeccionam com a linha do tucum. Alguns pesquisadores consideram a rede de dormir uma invenção do índio americano, particularmente o da região ama- zônica. A rede de dormir se adapta excepcionalmente bem às características do clima tropical, quente e úmido, por ser fresca e poder ao mesmo tempo ser- vir de cobertor; às necessidades de deslocamento, porque se trata de um objeto facilmente transportável; de higiene, porque pode ser lavada; e de disponibi- lidade de espaço dentro da casa, porque, durante o dia, pode ser levantada ou retirada, deixando toda a área da habitação livre para as tarefas domésticas. Examinando as características das redes entre grupos indígenas diferentes no Brasil, Berta Ribeiro (1986) sinaliza para o uso do algodão em algumas re- giões e de outras fibras, como o tucum, em outras regiões, especialmente na Amazônia.
O conhecimento da biodiversidade amazônica e dos recursos naturais está inserido na cultura dos povos da floresta. Esse conhecimento é transmi- tido através das gerações e constitui uma das principais fontes de informação sobre essa região. Os florestânicos detêm as habilidades necessárias para sua sobrevivência e autossuficiência desenvolvendo uma relação estreita entre na- tureza e cultura. Suas casas, alimentos e remédios, além de algumas ferramen- tas, artefatos religiosos e culturais são obtidos diretamente da floresta, que é a fonte dos principais recursos. A relação estreita e de interdependência entre esses povos e o meio ambiente é exemplo de uso sustentável da diversidade biológica. As plantas são utilizadas de maneiras variadas na tradição cultural desses povos.
O conhecimento de fiar a linha do tucum no Ceú do Juruá
Os povos indígenas que já ocupavam o vale do Juruá antes da coloniza- ção, entre eles os Kulina e os Katukina, já conheciam a técnica de fiação do tucum. Mas foi no começo do século XX, quando se intensificaram os inter- câmbios culturais entre os povos indígenas e os migrantes nordestinos que
vinham trabalhar na extração da seringa, que o conhecimento sobre os usos do tucum se disseminaram entre comunidades de seringueiros.
O tucum é uma das poucas palmeiras da região amazônica da qual é possível extrair o linho, a partir de uma técnica de manipulação de sua folha. Para os povos da floresta, o tucum sempre foi considerado uma planta muito leal e de muita utilidade por estar sempre por perto, viabilizando a confecção de objetos importantes para a vida na floresta como as redes – maqueiras –, as tarrafas, as linhas para o anzol, a corda para amarrar a canoa, como também para adornos e utensílios próprios como chapéu, bolsas e saias. Com a che- gada de objetos industrializados na região, muitos caboclos foram deixando de usar os utensílios confeccionados à base do tucum. Mas a memória não se perdeu. E ainda hoje, esses povos atribuem um significado especial a essa planta que sempre foi útil nas coisas mais essenciais da vida, especialmente o comer e o dormir – na linguagem dos caboclos, a “dormida”.
Na pesquisa que realizamos na região, recolhemos depoimentos de mo-
radores mais idosos relatando que até meados da década de 1950, a fibra da palmeira tucum era o único recurso que tinham na floresta para a fabricação da linha artesanal, utilizada na confecção de redes de dormir, linhas de pes- ca, malhadeiras (tarrafas), cordas, confecção de roupas, adornos e artesanato. Com a chegada do nylon e outras linhas industriais essa tradição foi se per- dendo, assim como diversos outros saberes tradicionais ligados à subsistência das populações da floresta.
Um desses moradores, Nercil Mota, ainda detém o saber de algumas práticas tradicionais, como a confecção do fuso, instrumento importante no processo de produção da linha do tucum. Em seu depoimento, observa-se a importância que anteriormente o tucum tinha na vida das famílias e como isso foi se perdendo ao longo do tempo:
Cheguei então com seis meses de nascido aqui. E saí daqui com 15 anos. Eu conheci o tucum aqui e muitas fiandeiras. Aquelas velhas que, hoje em dia, mesmo as filhas já estão velhas. Só viviam daquilo mesmo, fazendo tucum. Fazendo tarrafa, fazendo só a linha e vendendo para os patrão vender para os fregueses para arremendar as tarrafas. Aí eu conheci. E depois, tá com muito tempo, nem lembro mais quando foi, que eu tava viajando, apareceu o nylon, até que foi se acabando o tucum. Só aqueles caras mais humildes, que não tinha nada, era que ainda ia no mato tirar o tucum pra mulher tirar a linha pra fazer tarrafa… aí foi indo que todo mundo teve condições de comprar o nylon
e aí foi e acabou-se. Agora que ele tá retornando nos Estorrões. Tornou a vol- tar. Vamos ver se vai voltar ao que era. Agora o tucum eu tô achando que vai levantar. Vai levantar. (Nercil Mota, entrevista durante pesquisa realizada no Juruá, agosto de 2008).
Os membros mais antigos sabem descrever com precisão como se fazia a linha do tucum, que era algo feito sempre pelas mulheres e eles se lembram dos utensílios produzidos a partir da linha. Como pode se notar na fala de Nel, um antigo morador:
A Rita fez chapéu do olho do tucum para mim […] antigamente, não sei ago- ra, a linha era feita no fuso. Lavava o linho com sabão até ficar bem alvinha. (Entrevista durante pesquisa realizada no Mapiá, Amazonas, julho de 2008).
O atual líder comunitário e religioso, e também antigo morador, Alfredo Gregório de Melo, é também enfático na descrição da importância que a linha do tucum tinha para a população da região no passado:
Aqui no começo não vinha linha de jeito nenhum, desde para costurar roupa até para a pesca de arco, arpão, caniço, anzol, tarrafa, malhadeira. Como tam- bém corda grossa com a linha do tucum para amarrar barco. Era necessário aprender as coisas que serviam para a sobrevivência na época. Ninguém pega- va peixe se não tivesse a linha do tucum. Isso era comum aqui dentro, todos os moradores daqui de dentro. Todos precisavam aprender a mexer com a linha do tucum. (Entrevista durante pesquisa realizada no Juruá, Amazonas, agosto de 2008).
O botânico Evandro Ferreira, especialista em palmeiras e pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), destaca a importância da valorização cultural de produtos advindos de espécies nativas como o tucum. Segundo ele, do ponto de vista econômico, a preservação dessas espécies de- penderia em larga medida dessa valorização e de uma consequente geração de renda que poderia advir desse processo.
Hoje em dia muitas espécies nativas, como o tucum, o tucumã e o murmuru, perderam um pouco a importância econômica do ponto de vista alimentar e passaram a ser muito explorados para artesanato ou coisas mais culturais. […] quando você tem o uso de artesanato, fazer colares e exportar essa matéria-prima
e mesmo o produto acabado significa dizer que as florestas ricas em tucum vão ser teoricamente preservadas. Um exemplo concreto são as castanheiras: onde tem castanheiras, as florestas são preservadas pelos seringueiros ou pelo próprio dono da área, pode ser até um madeireiro, porque ele sabe que aquela floresta tem potencial de gerar riqueza. A mesma coisa acontece com o bu- riti. Essas espécies que tem potencial econômico causam esse tipo de efeito positivo. Então, se você faz uma pesquisa como essa, você mostra que pode aproveitar e a natureza agradece. (Evandro Ferreira, entrevista durante pesquisa realizada no Parque Zoobotânico – Universidade Federal do Acre, Rio Branco, junho de 2008).
O registro do saber fazer
De acordo com o que foi observado no Céu do Juruá, o processo de fabricação da linha do Tucum, conforme descrito abaixo, envolve habilidade artesanal e pode ser dividido em quatro etapas: coletar a palha, tirar o linho, pentear e puxar o linho, fiar e urdir a linha. Com exceção da coleta das palhas (que é feita tanto por homens quanto por mulheres), a produção da linha fica por conta das mulheres. O fuso utilizado na fiação é feito pelo artesão Nercil Mota, utilizando pedaços de cedro e hastes feitas de paxiúba. Atualmente o conhecimento do feitio do fuso foi disseminado para outros artesãos das co- munidades. É importante ressaltar que todo o processo envolve sempre coleti- vos. Do processo de coleta das folhas ao processo final de produção da linha, são etapas onde homens, mulheres e crianças se reúnem durante manhãs e tardes inteiras, trabalhando, cantando, conversando. Tudo se faz em movi- mentos lentos, que envolvem muitas trocas, sem um tempo definido para co- meçar e para acabar o trabalho. Assim, ao mesmo tempo em que é produzida a linha do tucum, produz-se uma sociabilidade e um aprendizado entre os que se envolvem nesse saber fazer. O trabalho relacionado à produção da linha do tucum é lento e envolve diversas etapas. Todas estas etapas são feitas de modo artesanal, com a utilização de ferramentas rudimentares e pressupondo extremas habilidades corporais. Mãos e pés são utilizados como instrumentos e diferentes posturas corporais são acionadas. O aprendizado dos mais novos e dos iniciantes tem lugar durante o próprio processo de feitura da linha, por imitação. Podemos dizer, portanto, que este saber fazer envolve importan- tes técnicas corporais, como a destreza para subir em árvores, a coordenação
motora ampla e fina de mãos e pés para retirar a seda, puxar o linho, lavar o linho, enrolar o linho no fuso e outros momentos do processo. Marcel Mauss (1974) assinalava que as “técnicas corporais” ou maneiras de utilização do corpo fazem parte dos “fatos de educação”, estando, portanto, sujeitas às in- junções de espaço e de tempo, sendo por isso, objeto de classificações sociais e de aprendizagens.
Coletar a folha
A retirada das folhas para confecção da linha é um processo bastante trabalhoso, pois se trata de uma árvore espinhosa, com espinhos até 20 cm que se alojam no caule e outros espinhos menores nas folhas e também nas palhas. A escolha da palmeira a ser coletada é criteriosa, pois ela é repleta de espinhos e por isso não é possível montar nela para tirar a folha. Quando a palmeira é baixa corta-se a folha na altura do estipe com o auxílio de um facão, e quando é alta faz-se necessário subir numa árvore ao lado para cortar as folhas. De cada indivíduo cortam-se duas ou no máximo três folhas, para não danificar o seu desenvolvimento (Figura 3). As folhas antigas não são utilizadas, sendo aproveitadas somente as folhas novas, das quais se obtém o linho com facili- dade e abundância.
Figura 3. Coleta da palha do tucum por moradores do Céu do Juruá.
Na coleta do “olho” do tucum – a folha jovem, ainda fechada que se encontra no centro de todas as folhas – existe um manejo local transmitido ao longo de gerações. Para não atrapalhar o crescimento da árvore, o olho de um mesmo indivíduo só é coletado a cada seis meses. Esse indivíduo fica em observação até brotar o próximo olho, que não deve ser retirado. Com o olho é possível fazer uma linha mais macia, boa pra fazer chapéu, bolsas.
As fiandeiras observaram que a coleta das folhas deve ser feita na lua nova ou na crescente, e é preciso deixar três palmos da folha do tucum. Depois de retirar a folha cortam-se os espinhos do talo (pecíolo) e retiram-se as pinas (palha) com cuidado para não se espetar a mão. Reúnem-se as pinas. Amarram- se com uma outra pina, para facilitar o transporte. Cada folha contém cerca de 160 pinas. Em seguida, lavam-se as pinas com água abundante para amolecer a seda durante a retirada do linho.
Com 130 palhas de olho se faz uma bolsa, ou seja, cada palmeira tem pa- lha para fazer duas bolsas. Ficou clara então a importância de fazer uma coleta alternada das palhas a fim de manter as árvores vivas e saudáveis. Três folhas são suficientes para confeccionar uma sacola de 35x25 cm.
Tirar o linho
Conforme ensinam as fiandeiras, para tirar o linho é preciso “saber o lado certo da palha”, como fica explicitado neste depoimento:
A palha do tucum tem os dois lados: o direito e o avesso. Quebra o talo e risca com a faca do lado avesso com cuidado para não apartar, aí tira a palha e fica a seda e depois tira a seda pelo lado direito para aparecer o linho. (Entrevista realizada durante pesquisa realizada no Juruá, Amazonas, agosto de 2008).
Dependendo da fiandeira, retira-se ou não o talo da pina e com o auxílio de uma faca sem estar muito amolada marca-se a pina pelo lado do avesso, a parte inferior da palha, puxando com a faca da parte marcada até o fim da pina. A parte folhosa é desprezada, ficando-se com a seda e o linho. Em seguida, passa a faca pelo lado superior da palha para separar a seda do linho. Vai-se juntando com um nó o linho verdinho um com o outro, a quantidade que qui- ser (Figura 4).
Figura 4. Imagem ilustrando a etapa de tirar o linho da palha do tucum.
Já a seda, as fiandeiras juntam para fazer tapete. Com o olho do tucum é mais fácil de trabalhar, pois não precisa tirar a seda.
Lava-se o linho no igarapé com sabão até ficar “alvinho” e coloca-se para secar estendido no varal (Figura 5). Quando seco pode-se tingir ou usar com a cor natural.
Figura 5. Moradora do Céu do Juruá lavando o linho no igarapé.
Pentear e puxar o linho
Penteia-se o linho seco com pente ou escova. O que sobra na escova é guardado para diversos fins: como enchimento de travesseiro, como bucha para banho ou lavagem de louça e para fazer bonecas.
A etapa de puxar o linho consiste em puxá-lo devagar com as pontas dos dedos da mão até se obter um fio da grossura desejada (Figura 6).
Figura 6. Imagem ilustrando a etapa de puxar o linho para a confecção da linha do tucum com moradoras do Céu do Juruá.
Fiar e urdir a linha
Com o auxilio do fuso de madeira, começa-se a etapa de urdir a linha. O fuso é feito por homens da própria comunidade. As fiandeiras usam a perna para rodar o fuso, entrelaçam dois fios, dando a forma de linha. A linha pode ficar da grossura que a fiandeira desejar (Figura 7).
Figura 7. Imagem ilustrando a etapa de fiar e urdir a linha do tucum por moradoras do Céu do Juruá e os novelos resultantes do processo de produção.
Ela foi uma sobrevivência no tempo da borracha, que as mulheres, as filhas, ajudavam os maridos a produzir a tarrafa. Então era um rodozinho assim, uma rodinha assim, aquilo a gente pegava e ia pra mata e tirava o tucum assim, aquele feixe botava de molho, aí a palha ficava mais ou menos dessa largura do isqueiro assim, aí riscava com a faca assim, aí tirava aquela palha e ficava o tucum, dali ele era lavado e botava para enxugar, depois dele enxuto, eu fa- zia aquelas tirinhas, enrolava no rolo e dali esfregava assim e fazia isso assim na perna, aí eu fazia a tarrafa, aí em vendia, os patrão compravam porque não existia o tal nylon, não existia essas coisas, daí era com isso que eles pescavam, então todo mundo comprava aquelas tarrafas, então aquelas mulheres, aquelas filhas ajudavam o marido, o pai a comprar alguma coisa, era um ganho. (Adílson Malunga, entrevista realizada durante pesquisa realizada no Juruá, Amazonas, agosto de 2008).
O simbolismo da linha do tucum na doutrina do Santo Daime
Na comunidade Céu do Juruá, a igreja tem um papel central, localizan- do-se no centro da comunidade e servindo de local para reuniões comunitá- rias, encontros diversos e trabalhos espirituais. Seus membros seguem um calendário extenso de trabalhos devocionais, reunindo-se todos os dias para
as orações. Todos participam desse dia a dia, entrando em contato com o uni- verso religioso e construindo laços de fraternidade, importantes para a vida social na região.
É importante chamar a atenção para o fato de que os rituais na dou- trina do Santo Daime são designados “trabalhos”. Como assinalou Arneide Bandeira Cemin (2004, p. 348), esses “trabalhos” aplicam-se sobre o corpo e o pensamento: as produções simbólicas, o imaginário: “A noção de traba- lho nomeia o ‘trabalho espiritual’ que, entretanto, tem como suporte o corpo em sua totalidade. […] é preciso ‘aprender a trabalhar com o Daime’.” Esse aprendizado envolve uma série de preceitos filosóficos e técnicas de controle corporal que passam pelo
fardamento, a concentração, a coordenação de movimentos entre os passos do bailado, o cântico de hinos e a cadência do maracá, e ainda, os efeitos da bebi- da que vão desde a aceitação de seu cheiro e sabor, até as sensações que pode provocar, tais como dormência, taquicardia, braquicardia, vômitos, diarréias, “viagens astrais” – sensação de morte e renascimento, angústia, prazer, visões belas e elucidativas e/ou terroríficas –, além da aceitação dos códigos de conduta no interior do sistema com destaque para a “obediência”, a “humildade”, e o “amor” a todos os irmãos. (Cemin, 2004, p. 349).
Ao fazer parte da comunidade do Santo Daime, o devoto é convidado a ingressar num complexo sistema de controle e domínio das emoções e dos sentimentos com o intuito de se aperfeiçoar neste mundo para atingir a cone- xão com o divino. Esse “trabalho” de domínio de si próprio implica um domí- nio físico – do próprio corpo – e um domínio mental – do espírito. Dominar a si mesmo implica um exercício de autocontrole e de passagem por provações físicas e materiais. Acredita-se que desse modo o indivíduo torna-se melhor para si mesmo e para o convívio com os outros. Durante muitos anos, os pri- meiros daimistas, como o fundador da doutrina, Mestre Irineu, para facilitar o entendimento dos devotos com relação às boas condutas a serem seguidas, citava em suas pregações exemplos retirados da vivência cotidiana dos povos da floresta. Uma imagem recorrente remetia para a linha do tucum. Esta, por ser uma linha forte, usada para diversos artefatos da vida doméstica, era apre- sentada como uma linha plena de virtudes: aquela que nunca se rompe, que é firme, que é de qualidade, que alcançou a perfeição.
Mestre Irineu destacava que os devotos deveriam observar o preceito da obediência para se ajustar à doutrina do santo daime, enfrentando os efeitos produzidos pela ayahuasca e domando corpo e espírito. Todos esses ensina- mentos eram passados aos devotos por meio de seu hinário, um dos principais guias do daimista. No Santo Daime, os hinos passaram a expressar a própria doutrina, isto é, a filosofia e as normas de conduta a serem seguidas, sendo entoados nos rituais religiosos. Eles passaram a ser “recebidos” pelos devo- tos como enunciados divinos capazes de estabelecer conexões entre o mundo material e o mundo espiritual, entre o visível e o invisível, o mundo terreno e o sobrenatural.
O hinário do Mestre Irineu é considerado um hinário fundador e lá po- demos observar alguns hinos que mencionam a linha do tucum, sempre asso- ciada à ideia de verdade, de lugar da perfeição. O primeiro desses hinos é o de número 108 do hinário “O cruzeiro”. Intitula-se “Linha do tucum”, e nele podemos perceber a associação do tucum como entidade religiosa, remetendo à ideia de força, seriedade e lealdade:
Eu canto aqui na terra O amor que Deus me dá
Para sempre, para sempre Para sempre, para sempre
A minha mãe, que veio comigo Que me deu esta lição
Para sempre, para sempre Para sempre eu ser irmão.
Enxotando os malfazejos Que não querem me ouvir Escurecem o pensamento E nunca podem ser feliz.
Essa é a linha do tucum Que traz toda a lealdade Castigando os mentirosos Aqui dentro desta verdade
Alfredo Gregório de Melo relata que, quando conheceu Mestre Irineu e entrou em contato pela primeira vez com esse hino, entendeu perfeitamente o sentido dos ensinamentos nele contidos, pois, naquela época, a linha do tucum ainda era muito presente na comunidade. Segundo ele, eram muitos os artefa- tos que ainda se faziam com a linha do tucum.
A gente associou [o hino] muito bem com a linha do tucum, que sempre foi mui- to leal com os seus moradores, pois, há cem anos atrás todos usavam a linha do tucum, não se chegava a ouvir falar nem de linha de costura. Nos tempos passa- dos, fabricavam até roupas com o tucum. (Alfredo Gregório de Melo, entrevista realizada durante pesquisa realizada no Juruá, Amazonas, agosto de 2008).
Anos mais tarde, o próprio Alfredo “recebeu” um hino com ensinamentos associados ao tucum. Trata-se do hino de número 27 do hinário “O cruzeri- nho”, intitulado “Vou receber a minha mãe”, do qual tiramos a seguinte estrofe:
Iluminando todos iguais Examinando um por um Castigando os mentirosos Nesta Linha do Tucum
Nesse mesmo período, Valdete Melo, o irmão mais velho de Alfredo Melo, “recebeu” o hino de número 3 do seu hinário, denominado “Eu peço a meu São Miguel”, ressaltando o valor simbólico da cultura da linha do tucum sempre associada ao valor de fazer o bem, de expressar a perfeição e se afastar dos defeitos, bem como de reforçar os laços comunitários.
Enxotando os malfazejos Aqui na Linha do Tucum
Meus irmãos vamos prestar atenção Para que nós sejamos um
Odemir Raulino, primo de Alfredo Gregório de Melo, também “recebeu” o hino de número 31, que veio a se integrar ao seu hinário “Daime sorrin- do”, intitulado de “Ta-tum, dem-dum”. Esse hino foi ofertado ao seu pai, Nel Raulino, antigo morador do seringal que sabe com precisão a arte de fiar a linha do tucum, comentando que “a linha é mais forte que o nylon, corta até dedo”.
Neste planeta do meu pai Tem a linha do Tucum Tem ta-tum, tem dem-dum Um, um, um, um, um, um
E pra seguir nesta linha É preciso conhecer Nunca passar dos limites Do que se pode fazer
Alguns anos mais tarde, o mesmo Odemir Raulino “recebeu” um hino que mencionava a volta da comunidade do Santo Daime ao Juruá, de onde o Padrinho Sebastião tinha saído com toda a sua família durante a crise da bor- racha em meados do século XX.
Meu Juruá, minha Mãezinha Que me deu esta linha
Para eu trabalhar
Meu Juruá, meu Rei Salomão Que em vosso torrão
Só vós faz brilhar
Buscando o lugar Parei aonde nasci
Pro Estorrões o trajeto é o rio Faz calor e faz frio
E viva São Irineu
Oh grande Rei São João Estou em pés no chão No caminho de Deus
A ti meu respeito E consideração
Metade és tu, metade sou eu Cresci e vivi e aqui estou eu
Nos hinos, portanto, a linha do tucum aparece sempre associada à ideia de firmeza, de solidez, de vínculo forte, de elos que articulam as coisas e as pessoas. Simbolicamente, a linha do tucum é considerada a linha da lealda- de, que nunca se rompe. Constitui uma meta a atingir, um ideal de perfeição alcançado pela natureza que os homens devem perseguir. Assim, a linha do tucum não constitui apenas o objeto de uso instrumental e prático para a vida do dia a dia, para a confecção de redes, tarrafas ou objetos de adorno. A linha do tucum representa uma força da natureza que advém de linhagens espirituais de maior grandeza. Por isso, os homens se curvam diante de seu potencial e de sua força. Por isso, os homens devem aprender com seu exemplo.
É estabelecida aqui uma analogia entre a prática espiritual e a linha do tucum. A ideia de que a linha do tucum é uma linha forte que não se rompe é associada ao ideal humano perseguido pelos devotos de serem firmes em suas convicções e não se deixarem corromper. O exemplo da linha do tucum é evocado como exemplo de perfeição a ser seguido, correspondendo aos de- sígnios da natureza. É importante ressaltar que a prática espiritual do Santo Daime prega essencialmente a autossuperação, sendo o autoconhecimento e internalização, os meios de obter sabedoria. Segundo seus adeptos, a doutrina do Santo Daime é uma missão espiritual cristã, que encaminha os seus prati- cantes à regeneração do seu ser. Isso acontece porque o daimista, ao participar dos cultos e ingerir o Santo Daime, inicia um processo de autoconhecimento que visa corrigir os defeitos e melhorar-se sempre, para que possa um dia alcançar a perfeição.
Tanto as práticas espirituais com o Santo Daime, quanto a prática de
confecção da linha do tucum envolvem sempre coletivos de indivíduos, refor- çando laços de sociabilidade e chamando a atenção de maneira didática para a necessária inter-relação entre os membros da comunidade. Assim, também nesse aspecto, a analogia da prática espiritual com o saber fazer associado à linha do tucum é exemplar, reforçando o ideal do coletivo como estratégia de sobrevivência na floresta.
Considerações finais
Todos os dias somos atraídos por novidades, principalmente as tecnológi- cas, que facilitam o trabalho do dia a dia. Se antes nossos ancestrais pescavam
com arco e flecha ou com redes de pesca e tarrafas confeccionadas a partir da linha produzida de folhas de palmeiras, hoje o mercado nos oferece a preços módicos redes de pesca e tarrafas produzidas industrialmente à base de fios de nylon. Se, de um lado, a produção industrial em alta escala trouxe praticidade, por outro lado, ela tem sido responsável pelo fim de técnicas seculares. Mas não são apenas técnicas que são substituídas acompanhando o ritmo do pro- gresso e da modernização. Quando uma técnica antiga desaparece, junto com ela perde-se todo um conjunto de saberes, tradições e formas de organização do trabalho. O conhecimento tradicional associado ao uso da linha do tucum constitui exemplo emblemático.
Os conhecimentos tanto do aspecto material do uso da palmeira tucum e sua linha, quanto do aspecto espiritual e do simbolismo associado não po- dem vir dissociados um do outro. O presente trabalho de pesquisa sobre a linha do tucum recupera essa visão articulada entre o material e o imaterial, entre o terreno e o divino. Com a difusão para o público dos resultados dessa pesquisa sobre a linha do tucum, bem como da ação empreendida pela equi- pe do projeto para a dinamização do artesanato local com o uso dessa linha, descortina-se novo horizonte. Novas parcerias são estabelecidas, o conheci- mento tradicional associado ao uso do tucum é valorizado, culturas populares são promovidas e preservadas como fontes de inspiração para a criatividade contemporânea. Temos certeza de que pesquisar e valorizar os “conhecimen- tos tradicionais” associados à biodiversidade representa uma via para a busca de novas alternativas de sustentabilidade ou para a elaboração de uma nova filosofia da natureza. Pois, como assinalou Eduardo Viveiros de Castro (2011, p. 2), o fenômeno mais significativo do século presente consiste na brusca “intrusão de Gaia” no horizonte histórico humano, o sentimento de irrupção definitiva de uma forma de transcendência que pensávamos ter ultrapassado, e que agora reaparece mais formidável que nunca: “Gaia irrompe entre nós suscitada pela transformação de nossa espécie, ou melhor, de seu etograma hoje dominante, em uma força macrofísica.” É nesse contexto que retomar a sistematização de “conhecimentos tradicionais” intrinsecamente relacionados com os elementos da natureza torna-se significativo.
Dessa forma, podemos perceber a importância da identificação e siste- matização de uma prática milenar que foi se perdendo diante da chegada de produtos industrializados, no caso a substituição da prática da confecção e uso da linha do tucum pela prática da compra e do uso da linha de nylon. Mais do
que nunca, torna-se relevante a salvaguarda de conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade como forma de organizar um importante acervo de práticas não poluentes e sustentáveis para o horizonte de possibilidades da espécie humana. Esse pode ser um dos legados da nossa geração para o futuro.
Referências
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